Thursday, July 12, 2012

Carruagem 11. Lugar 62


Estou a viajar pela Europa no lugar 62 da carruagem 11, do TGV com direcção a Paris. Estou à janela porque acredito que só à janela se pode ver o mundo em toda a sua amplitude e claridade. Daqui vejo tudo: uma criança a dizer ao pai que quer aquilo e o pai a explicar lhe que não irá ter aquilo ameaçando-o com um par de galhetas se continuar assim – o miúdo vai continuar assim desta janela, vejo cidades inteiras à espera dos seus, que um dia chegarão sem a pressa do Natal, sem a pressa de ir embora depois da noite de Natal, a haver pressa que seja a de ficar. Da janela vejo uma senhora gesticular muito, como se protestasse contra a vida que leva e todos os que a rodeiam e talvez até o mundo. Vejo campos silenciados como se tivessem uma mordaça na boca, árvores órfãs, um animal que persegue uma ameaça imaginária, um homem que fala ao telemóvel, um outro que fala sozinho, uma sombra que percorre o comboio e não o larga, uma velha senhora que à sua passagem se benze, vilas que já se esqueceram do seu nome, ruas que nunca o tiveram, campos de feno que já alimentaram famílias inteiras, um corvo, uma casa, um puto, um jornal abandonado num banco de jardim, notícias de hoje talvez de ontem, um sermão na missa aos descrentes, um pião que rodopia frenético como o Joaquín Cortés a dançar flamenco, um rio devassado pela estrada, pessoas de todas as idades, cidades, campos, vilas, credos, é tudo o que vejo desta janela, desta carruagem, deste comboio. E no entanto, percebo agora, nunca saímos daqui, desta estação onde permaneço imóvel.

Fernando Alvim
Publicado originalmente no jornal i

1 comment:

  1. Quem me dera conseguir mais coisas assim... Mas a culpa é minha que não sei onde escreves.
    Gostei imenso.
    PM

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