Thursday, March 20, 2008

A vida vista aqui de cima


De cada vez que me apanho no alto de um avião e olho cá para baixo da janela, penso na vida. Na minha e na dos outros, na vida em si, nua, tal qual veio ao mundo, como se estivesse nos instantes antes de entrar na banheira para um duche. Um frio de rachar cá fora, e nós ali com as mãozinhas a ver se água já está quente ao ponto de podermos entrar sem receio. E o que dali vejo – ainda do alto do avião - não é muito diferente de uma cidade Playmobil, com casas feitas de Lego e pessoas a quem já vão faltando peças. Carros a andarem muito devagarinho e imponentes fábricas que daqui me parecem estar ao alcance de uma rajada de vento. E sabem que mais? A vida não é muito diferente de uma cidade Playmobil. Acho até, que quando nascemos nos é dado um tabuleiro com as peças deste jogo e nos dizem “ Toma rapazinho, agora faz-te à vida e tenta encaixar todas as peças que aqui estão. Se o conseguires terás terminado com êxito o jogo que te era proposto. E isto é a vida. Não mais do que isto, meu bom rapaz! E agora adeus que tenho mais que fazer” E enquanto vai desaparecendo nos céus, este espécie de super-herói do Serviço de Entregas Rápidas vai olhando para trás enquanto repete as frases, com a voz colocada como se estivesse a representar uma peça do Shakespeare: “E isto é a vida! Não penses que é mais do que isto! Junta as Peças! – a voz começa a diluir-se no espaço! - Junta as peças! - O superheroi cada vez mais longe - Junta as Peças! – na verdade, a distância é tanta que já só se torna perceptível a palavra “peças” mas advinha-se que as outras serão “Junta as”.

E posto isto, com o jogo na mão, fazemo-nos à vida como se estivéssemos prontinhos a ir para o mar em dia revoltoso. De resto, se a vida fosse uma coisa tão boa, não era olhada com esta desconfiança. Esperem lá, a vida é uma coisa boa – pode até ser muito boa - mas existe em nós um receio em relação a ela que é muito semelhante ao que sentimos quando emprestamos dinheiro a alguém que não conhecemos bem. Com um pé atrás. Ou com dois. ou três, se os tivéssemos. Reparem só, não deve ser à toa que os pescadores quando se preparam para ir à pesca, apagam o cigarro na areia, fecham o casaco até cá em cima e dizem “Bem, vou fazer-me ao mar”.Ou então, se preferirem, ainda em tenra idade mas no auge da afirmação da masculinidade, quando somos confrontados com uma provocação verbal de um qualquer betinho com camisa aos quadradinhos, é natural que alguém diga “Faz-te a ele, pá! E assim é também com a vida. E por isso se diz “Faz-te à vida” no mesmo tom de faz-te ao mar, de faz-te a ele, de faz-te galp. E assim por diante, como se fôssemos rompendo o mar. E isto é a vida. Não contem com mais do que isto.

E assim, há quem consiga construir a sua cidade Playmobil, encaixando peça sobre peça, dando sentido a cada lego, percebendo que ali só pode ser aquela e não nenhuma outra, mostrando, radiantes, como conseguiram ser fiéis ao plano que lhes haviam anexado desde o início e que tinham visto num anúncio na televisão. Uma fotografia a cores, tirada de cima, a mostrar como tudo deverá ser, tal qual o papel de instruções de montagem de um qualquer armário do IKEA. E posto isto, outros há que perdem peças ou que se esquecem de que não era ali que as deveriam ter colocado ou que perdem o sacana do papel que ainda agora aqui estava ou que deliberadamente inventam na certeza de que assim também vai dar. Ou então, que comem peças tal qual uma criança as leva à boca. Para esses, a vida será bem diferente de uma cidade Playmobil. E isso, pode ser bem melhor.

11 comments:

  1. As peças que aparecem à grande maioria não dão para um beco, quanto mais uma cidade.
    Por mim, já me resignei.
    E nestas coisas de montar contento-me com pouco. Olha a Carla Matadinho chega-me.

    ReplyDelete
  2. "Faz-te galp" ehehehehehehehe

    Brilhante!!!

    Parabéns, de vez em quando até escreves umas coisas catitas e, sobretudo (casacos, parkas,etc..), juntas as palavras de uma forma em que consegues no final ter... uma frase.

    Keep Going!
    Abraço

    ReplyDelete
  3. Um dos meus passatempos era partir as peças dos legos ao meio para encaixarem quando precisava de uma com 2 furos e só tinha daquelas de 6 furos. Hoje em dia acho que prefiro fazer as minhas próprias peças daquilo que houver mais à mão, barro ou cuspo, mas vai-se fazendo, nem que seja com playmobils comprados na feira (playmovils).

    A corda estica, estica, estica, mas não parte, continuamos trapezistas pelo espaço sideral, cometas que insistem em rasgar os céus até na noite mais escura.

    Paz!


    J

    ReplyDelete
  4. Eu gostava de legos.

    E da Playmobil. :S

    ReplyDelete
  5. deixem lá as metáforas.
    ele já disse tudo.

    ReplyDelete
  6. Estava a passear pela blogesfera, quando me deparo com este magnifico blog! :) Não há qualquer dúvida de que estou extremamente surpreendida, pois parece-me que o Alvim é mt mais daquilo que eu supunha ser... Por vezes, as aparências iludem e essas não são mesmo mais do que isso, aparências... Em todo o caso, repito que gostei imenso do blog e certamente voltarei cá mais vezes! ;)

    Quanto ao texto, acho q o sr. Lá de cima fez da minha vida uma espécie de peddy-paper, em determinados momentos-chave descubro peças da minha vida e assim vou construindo, algumas vezes, reconstruindo a minha cidade lego... Somente espero chegar ao fim do jogo, com uma coisa bonita! :P

    Beijinho*
    Catarina

    ReplyDelete
  7. Alvim, és grande. Adoro ler-te.

    ReplyDelete
  8. Interessante dissertação, meu caro Alvim. E, agora sim, percebo o porquê de me dizerem, constantemente: "mas que grande peça que tu me saiste".

    Aquele abraço. Capaz de apertar. Mas, ainda assim, não passível de desmontar.

    ReplyDelete
  9. 'E o que dali vejo – ainda do alto do avião - não é muito diferente de uma cidade Playmobil'

    Eu penso tantas vezes nisto.

    Devo dizer que gosto muito da forma como escreves, escreves muito daquilo que eu penso. (Já deves ter lido este tipo de comentário n vezes.)

    Parabéns.

    ReplyDelete
  10. Excelente analogia!!!

    Cada um possui diferentes quantidades de peças, de diferentes tamanhos e dos mais variados tipos de encaixes, que condicionam a construção de cada um dentro de determinados limites e espaços, levando a que só com grandes rasgos de genialidade ou sorte/acaso se possa contornar esses condicionalismos.

    Felizmente para alguns, as suas peças possuem encaixes mais evoluídos e permitem encaixar em vários locais.

    Mas com em todos os jogos, nem o lego é imune à batota (ou a qualquer outra mafiosisse), onde tantas peças são passadas, replicadas e mesmo subtraídas ao nosso cenário em prol de uns jogadores menos escrupulosos e de um arbitro/casino/BB que nos subtrai muitas peças, nos baralha e desorganiza os legos, alem de nos estragar os encaixes das peças, de olear ou engordurar as mesmas peças e de nos agitar o tapete com cada vez maior frequência.

    O que mais posso dizer? Há um lego bem melhor, mas é muito caro!!!


    Abraço

    ReplyDelete