Friday, April 19, 2013

Inquéritos do Jornal Metro


Desta vez, falámos com o músico e apresentador João de Melo, que partilhou connosco os seus momentos marcantes e os seus projectos preferidos.


MOMENTOS ÁUREOS

Da inconsciência
Durante a adolescência comecei a conquistar gradualmente alguma independência dos meus pais e consegui convencê-los a deixarem-me ir fazer campismo selvagem… sozinho! Todos os anos lá ia eu para o sudoeste alentejano com a trouxa às costas. Um dia estava na praia a olhar para a ilha do Pessegueiro e pensei porque raio não haveria eu de lá ir? Entre a malta que íamos conhecendo contavam-se lendas sobre o castelo em ruínas, que havia um túnel secreto que ligava a ilha ao continente, tudo muito à moda d'"Os Cinco" da Enyd Blyton; o único problema é que há um mar a separar e nada para nos levar lá. O único problema? Para um imbecil de 15 anos isso não é um problema, é um desafio! Esperei a maré baixa e fui a nadar até lá, a única coisa que levava comigo eram os calções de banho. Após uma travessia complicada cheguei, pesquisei a ilha e finalmente pus-me no sítio mais alto a admirar o oceano sem obstáculos visuais, de costas para os "cobardes" na praia. Só que o silêncio e a solidão fez-me meditar: será isto o que o Neil Armstrong sentiu? Sim, conquistei a Lua… e depois? A vacuidade do objectivo tornou-se clara, o que restou foi uma fanfarronice juvenil masculina! Ou seja: fui à procura da glória e encontrei auto-conhecimento… Já vi no Google Earth que a distância percorrida são uns meros 600 metros ida e volta (12 piscinas olímpicas) mas recentemente passei lá, vi a ilha da praia e meus amigos: não faço ideia como cheguei e voltei; mesmo assim impressiona!

Do absurdo
Nos primeiros tempos das minhas lides musicais pelos anos 80 com bandas rock, andávamos país fora a fazer espectáculos que muitas vezes eram comprados por agentes locais; apesar de não sermos ninguém em termos mediáticos esses agentes faziam questão de nos levar a casa deles a jantar e apresentavam-nos à família e amigos que miraculosamente apareciam por acaso naquele dia. Éramos exibidos com tanto orgulho que nós próprios se não tivéssemos discernimento poderíamos julgar que éramos alguém importante; felizmente para a minha saúde mental, eu próprio sempre me senti mais Gungunhana que princesa Diana. Numa dessas ocasiões em plena aldeia do interior alentejano acabado o repasto em casa do agente, eu e a restante comitiva, músicos, técnicos, etc dirigimo-nos à única tasca da aldeia para as inevitáveis bicas. Ora bem, vamos lá contar entre quem quer e quem não quer café, o que daria aí uns 12. Pedido feito ao dono da tasca, a resposta veio ríspida e súbita: "-Isso é que era bom!!! Não fazia mais nada do que ficar aqui a noite toda tirando caféissó para vocês…" Perante isto tivemos de ser criativos e encontrar uma saída, sabem qual foi? Simples: fomos lá dois a dois pedi-los e assim o homem serviu toda a gente.

Do tempo
Em 1987, com a cabeça cheia de sonhos larguei o sol de Lisboa e fui para a sombria Londres à procura duma carreira musical. Respondi a um anúncio do NME para vocalista duma banda com as características que eu apreciava, fiz a audição e fiquei. No dia do primeiro ensaio marcado para as 15 horas, como qualquer bom português saí de casa 10 minutos antes; devo ter chegado próximo das 15,30h e ninguém aqui consegue imaginar a indignação violenta com que fui recebido: queriam correr-me imediatamente da banda por causa do atraso. Eu nem conseguia reagir tal era a estranheza sobre minha suposta falha e só pensava que "estes gajos não regulam bem". No meio do caos do linchamento, o guitarrista, lançou a dúvida no ar: "-esperem lá, nós dissemos-lhe 15 ou 15,30h?" Nesse momento as nuvens abriram-se, comecei a ouvir cantatas de Bach e apareceu um anjo que me segredou em português ao ouvido: "-aproveita, pá!" Percebi imediatamente a janela de oportunidade e com a maior desfaçatez do mundo, qual Egas Moniz descalço e de corda ao pescoço respondi com vozinha sumida: "-Pois; a mim disseram-me 15,30h!" Ninguém aqui consegue imaginar a súbita transfiguração do KKK: desfizeram-se em desculpas, todos genuinamente arrependidos de me terem crucificado sem razão. Fiquei tão impressionado com este rigor e tão envergonhado de ter enganado os totós que desde aí raramente me atraso; quando acontece até fico mal disposto… mesmo em Portugal! 

Da candura e dignidade perante as adversidades
Há uns anos fui a Cuba e aluguei um jipe para andar à solta pela ilha. Logo no primeiro dia perdi-me e pedi ajuda a uns transeuntes; eles perguntaram-me se podia levar uma senhora que me indicaria o caminho. No trajecto fiquei a saber que ela era médica e ganhava 20 dólares por mês; um dólar era a gorjeta normal deixada por quem pedia um café no hotel... Quando chegámos pedi à senhora que aceitasse 20 dólares pelo serviço prestado, levando-me ao destino. Recusou veementemente mas o que é isso? Também era só um mês de ordenado oferecido por alguém que nunca mais vai ver na vida… Em Havana fui abordado por um indivíduo amistoso que se ofereceu como guia e desconfiado perguntei-lhe quanto me iria custar a "gentileza"; ainda mais desconfiado fiquei quando me disse que era de graça, fazia-o pelo prazer do contacto com estrangeiros. Lá aceitei e entre as várias visitas a sítios de interesse pedi-lhe para me encontrar com músicos; no big deal, é uma cena nossa, todos os meus colegas o fazem: levamos material para dar, entre cordas, palhetas, etc, qualquer coisa que possa acrescentar alguma dignidade à qualidade artística que geralmente já têm. Ao fim do dia ia deixá-lo quando veio "o" pedido: ora bem, o que será? Já cá faltavam as letras pequeninas do contrato. Foi isto que ele disse: "- João, podes ir ali comprar-me um pacote de leite em pó para a minha filha? Dá para 15 dias, custa 6 dólares e se eu for comprar tenho de ficar naquela fila (enorme); se fores tu, por seres estrangeiro com dólares passas à frente…" Este rapaz esteve a tarde toda a servir de guia, a inundar-me o coração de simpatia e isto foi o que ele pediu em troca… Já agora, não sei se disse mas um dólar era a gorjeta normal que se deixava por um café pedido no hotel.

Dum conceito desconhecido
Não sei se se lembram mas há uns anos houve um programa na SIC chamado "Na casa do Toy": era um reality-show que retratava o dia-a-dia do artista. Um dia o Toy convidou-me a mim e dois amigos meus para irmos a casa dele, jantarmos em Setúbal e irmos assistir a um jogo entre o seu Vitória e o nosso Sporting; aceitámos, 'bora lá para a palhaçada. Chegados a casa dele sentámo-nos os três num sofá e ficámos à espera. Na sala estava só um puto, um sobrinho do Toy que não parava sossegado: ele era saltos nas cadeiras, golpes de kung-fu no ar, parecia completamente alterado pela presença duma plateia; alguém entrou e disse que "o miúdo é terrível, ah ah ah, vejam só que outro dia partiu o braço à irmã em directo, tá quieto ó não sei quantos"… Mas a inquietação continuou embora nós nos tivéssemos mantido completamente indiferentes ao seu espectáculo até que finalmente veio a esperada abordagem emocional, é normal, somos todos macacos: os nossos telemóveis estavam em cima duma mesa, o puto estica o braço em direcção a eles e diz "-empresta-me o telemóvel" Eu respondi calmo mas firme: "-Não!" A mão dele parou subitamente no ar, ficou extremamente confuso, via-se no olhar que estava a processar mentalmente o conceito da palavra mas o cérebro não conseguia compreendê-la e ao fim duns segundos em silêncio que pareceram horas só conseguiu dizer: "Não???" "Não!" -repeti eu. Recolheu o bracinho e cabisbaixo saiu da sala com a cabeça a entrar em fusão; é natural: Não? Que palavra era aquela?  

PROJECTOS MARAVILHOSOS

1
Já tenho o filho, já escrevi o livro, falta-me plantar a árvore. Talvez seja melhor adiar ao máximo essa acção porque uma vez concluída devo ficar perto de cumprir o meu propósito na vida. Gostaria de plantá-la aqui mas suspeito que o farei noutro continente mais propício ao crescimento.

2
Quando me sair o jackpot do euromilhões fico com 10% para mim, família e amigos e 50% ficam a render de modo a alimentar continuamente duas fundações que levam os outros 40% à cabeça: a primeira vai apoiar projectos artísticos de pessoas sem meios mas com talento, de preferência em português e a segunda vai apoiar projectos de investigação pura na área da ciência. Hoje em dia a maior parte dos crânios trabalham para empresas que apenas desenvolvem produtos comerciais o que não significa que sejam avanços realmente úteis para a humanidade, às vezes são-no por tabela, como os relacionados com a guerra; no entanto não desdenharemos o registo de patentes e uma utilização lucrativa de qualquer coisa que se descobrir, a um preço justo. Desconfio que a segunda fundação é uma utopia porque facilmente seríamos destruídos por estados ou por entidades desconhecidas. 

3
Uma vez apareceu-me para assinar um contrato de edição que na sua cláusula 16 dizia textualmente: "a editora é detentora dos direitos do artista para o território nacional, todos os países da Terra, sistema solar e espaço que o circunscreve". Só gostava de saber o que é que eles sabem que eu não sei, a sério! Espaço que circunscreve o sistema solar? Fogo! Com a minha esperteza saloia ainda pensei que podia vender CDs à socapa em Júpiter mas agora já sei que nem na galáxia de Andrómeda fujo à jurisdição da editora.   

4
Já agora, um dia também gostaria de saber se "eles" andam aí, seja no fundo do mar, dentro da Terra, na Lua, algures no espaço ou noutras dimensões; saber se somos "irmãos" ou um rebanho criado para seu usufruto; saber se alguns de nós sabem disso e são os seus cães de guarda.  

5
O quinto projecto é consequência e realiza todos os outros: construir algo que me permita viajar à velocidade da luz, para outras dimensões e por buracos de verme; assim também viajarei no tempo. Irei aos confins do sistema solar para plantar a árvore do projecto 1 e fugir à jurisdição da editora do projecto 3, vou a outras dimensões e portanto realizo o projecto 4, vou à futura sexta-feira e realizo o projecto 2; como bónus vou ao passado, levo o George Michael à Alemanha dos anos 20, apresento-o ao Hitler e meto uma cunha para ele entrar na faculdade de arquitectura de Viena. Podia ser que com as necessidades sexuais e artísticas satisfeitas o palhaço acalmasse, senão morria atropelado num infeliz acidente. Este também promete ser a continuação do primeiro momento áureo e uma prova que temos dificuldade em aprender: uma fanfarronice masculina mas agora... senil.




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