Friday, December 21, 2012

Blogue Memória IV


Recordar é viver, diz a canção do Vítor Espadinha, e nós, por aqui, continuamos a vasculhar o arquivo do blogue. Hoje, dia do fim do mundo, recuperamos um texto que fala disso mesmo. Foi publicado numa distante terça-feira de 2007.

O Fim do Mundo


No preciso instante em que vos escrevo – é Terça-feira e são nove e meia da noite desta precisa semana – está a trovejar tanto lá fora, que aqui vos revelo, que há pouco me pareceu ver a Arca de Noé e todos os seus animais a passarem ali pela Praça de Espanha. Talvez não seja. Deve ser só impressão minha. Chove muito. Os alarmes dos carros dispararam todos ao mesmo tempo e os assaltantes mais astutos aproveitam a ocasião para fazer o que sabem: - “ É a trovoada, é a trovoada!” – dizem e enquanto isso, subtraem um auto-rádio, duas colunas, aí vai uma mala, menos um portátil, uma carteira de senhora - “ É a trovoada, é a trovoada!” - e menos uma máquina fotográfica, dinheiro do tablier, um vidro partido que este não estava fácil, uma série de documentos que não vão servir para nada mas eles só disso saberão quando chegarem a casa encharcados e pedirem algo quente que está muito frio e lhes tremem as mãos. Ouvem-se as sirenes dos bombeiros e o choro das crianças dos vizinhos aqui do lado, o mesmo choro que fazem quando o pai lhes diz por esta hora “Tens que ir dormir!” e eles reclamam e protestam da única forma que sabem: A chorar como se fosse o fim do mundo. E se calhar é o fim do mundo e os miúdos é que têm razão, porque está mesmo a trovejar muito e aí vem um – Não pensem que eu estou com medo, ouviram? – Uma luz enorme no céu aberto e toma lá outro pela fresquinha – deixem-me só ir buscar uma vela que eu já vos atendo – E aí vem outro que isto não pára!

Já terei contado mais de 10, talvez 20 e como de costume, as sirenes dos bombeiros confundem-se sempre com as da polícia. Estas eram dos bombeiros porque vi da janela as luzes laranja. As da polícia são azuis e - mesmo a calhar! - Passam exactamente agora. Aliás, é curioso perceber que em caso de intempéries primeiro passam os bombeiros e depois a polícia e noutro tipo de incidentes, primeiro a polícia e só depois os bombeiros. Às vezes, só para chatear, primeiro fazem passar a polícia e logo depois o carro dos embaixadores de um país qualquer, e outras, naquela que eu considero - sem dúvida - a manobra mais espectacular, aparecem primeiro com o carro do INEM, depois a ambulância e em terceiro lugar mas com grande dignidade, o carro da polícia acenando à multidão. Nestas ocasiões, fico sempre com a ideia de que estamos perante a passagem do pelotão da volta a Portugal e chego-me sempre ao passeio para ver se vejo passar o Cândido Barbosa, ao qual muitos já chamam o Fernando Mamede do Ciclismo.

Sempre que vejo um raio no céu digo para mim mesmo “Querem ver que este é para mim?! – e fico muito aliviado quando percebo que fui poupado mais uma vez. Quando era miúdo e isto acontecia, enchia-me de cobertores e fazia da minha cama uma espécie de “bunker” com tal isolamento sonoro, que apenas dava para ouvir a minha respiração apressada. A minha avó bem me dizia “Reza a Santa Bárbara! Reza a Santa Bárbara!” mas como eu estava com o tal isolamento estas palavras só me chegavam quando a coisa já tinha passado. E depois, quando a situação estava mesmo complicada e eu percebia que o fim estava próximo eu sabia muito bem o que fazer: corria para o quarto dos meus pais de peito aberto e já aí demonstrando grande arrojo e coragem dizia-lhes: “Cheguem-se para lá que eu tenho medo!

[Fotografia de Alex Howit]

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