Sunday, October 13, 2013

Balanço Vital no jornal Metro

Convidámos o escritor, professor e ensaísta Miguel Real para fazer um pequeno balanço pessoal. Ora leiam o que ele nos respondeu:


B A L A N Ç O: UMA VIDA COMANDADO PELO ACASO

PAIXÕES E ESPERANÇA

1. - Paixão pela Filosofia - nasceu um pouco por acaso. Estava na fila da Reitoria da Universidade de Lisboa  e tinha de me inscrever no 1º ano de um curso de Letras. Hesitava entre História e Filosofia. Um  estudante que estava à minha frente começou a falar comigo, contei-lhe que  estava indeciso, ele tirou-me o impresso da mão e escreveu "Filosofia", dizendo, "fazes-me companhia,  que eu também vou para Filosofia". Assim - sempre apaixonado pela leitura de obras filosóficas - me tornei professor de Filosofia durante 36 anos.

2. - Paixão pela Filomena. Minha colega do curso, do 2º ano, com uns olhos vivíssimos. Convidei-a para irmos ao cinema Monumental, ver o filme "Trás-os-Montes", do António Reis. Saímos do cinema, fomos para o restaurante chinês da Av. Duque de Loulé, apaixonámo-nos, e ainda hoje, 37 anos depois, vivemos juntos.

3. - Paixão pela participação cívica. Começou no dia em que tinha frequência de "Cultura Clássica" com o Pe. Manuel Antunes. Levantei-me nervoso, há uma semana que estudava a sebenta 12 horas por dia. Cheguei afogueado à Faculdade - vazia, anfiteatro vazio. Data: 25 de Abril de 1974, o capitão Salgueiro Maia invadira Lisboa de madrugada  com os seus tanques.  Todos tinham ouvido na rádio. Eu não ouvia rádio de manhã. Nesse dia fui a pé para  a Baixa e vivi um dos dias mais belos da minha vida.

4. - Paixão por Sintra. Eu e a Filomena preparávamo-nos para alugar casa em Lisboa, mas uma amiga dela, a Helena Paixão, "forçara-a" a concorrer para o liceu de Sintra como professora. Hesitámos entre Lisboa e Sintra, fomos ver umas casas para alugar em Sintra e ficámos apaixonados pela primeira casa, a caminho da serra, sobre a vila. Ficámos em Sintra, onde 37 anos depois ainda vivemos.

5. - Paixão pelo ensino. Recordo o primeiro dia de aulas no nacionalizado "Colégio Lassale" em Abrantes. As minhas pernas tremiam, não controlava correctamente a língua, falava como se fosse gago, as palavras encavalitavam-se umas sobre as outras, esquecia-me dos nomes dos filósofos. A meio da aula, o discurso tornou-se fluente, entusiasmei-me e contei três ou quatro histórias engraçadas sobre a vida dos filósofos. Os alunos perceberam a minha inicial soberana aflição, eu tinha dito ser a minha primeira aula como professor e, no final, ao toque da campainha, desataram numa salva de palmas que nunca mais esqueci. Tinha acertado na profissão.

ESPERANÇAS

1. - Esperança que os meus romances e ensaios atinjam um público leitor cada vez mais alargado. Não me posso queixar, mas gostava de ser lido por uma faixa maior de leitores.

2. - Esperança de voltar a viver de novo 6 meses no Brasil ou na Índia.

3. - Esperança que a elite política e administrativa portuguesa não aja como age desde d. João III - no tempo das vagas gordas, distribui  os proventos entre si; no tempo das vacas magras, carrega o povo com impostos e múltiplas taxas, sugando a poupança das famílias.

4. - Esperança que a Éter - companhia teatral e cultural em que participo - consiga internacionalizar-se em 2014. Tudo aponta para que sim.

5. - Esperança de levar uma vida lúcida, suave e serena até à morte, sempre a ler e a escrever na casa de Sintra. O mais recolhido possível.


No comments:

Post a Comment