A esta altura, quando vos escrevo, são 5 da manhã nesta minha varanda e já poucas luzes sobram nas janelas. Apagou-se agora uma tal qual uma dessas estrelas que se esfumam no palco. Eu sei que as pessoas pensam que eu acho que está tudo a dormir, mas eu sei, eu sei que ninguém está a dormir, que está tudo atrás das persianas a vigiar o mundo, eu sei que estão todos aí a fingir que estão a dormir mas eu sei que não estão a dormir, estão acordados, a olhar o céu ou para a vida mas estão acordados, com medo que a sua própria respiração acorde esse alguém. Com medo de acordar esse outro “eu” que dorme há tanto.
O que me acordou a mim - se é que alguma vez dormi - foi uma porta de um frigorífico a abrir como se fosse de metal e lhe tivesse crescido ferrugem nas dobradiças. Vamos cá ver, primeiro senti uns pés descalços pelo corredor, depois percebi que alguém terá acendido a luz da cozinha porque lhe reconheço - a esta luz e não outra – a demora a acender como se tratasse da ignição de um carro pela manhã num frio dia de Inverno. Depois, depois ouvi uma espécie de abrir de porta em tudo parecido com aqueles filmes de terror do Pesadelo em Helm Street ou coisa assim, em que há sempre uma voz de uma criança a cantar uma música de embalar e, de repente, alguém salta da cadeira.
Eu sei que ninguém está a dormir por detrás desses cortinados brancos mesmo que todos me queiram fazer crer do contrário. Eu sei que a esta hora ninguém adormece à frente dos televisores. Pelo contrário, são os televisores que adormecem à nossa frente, aborrecidos com a nossa programação. As pessoas tornaram-se na televisão lá de casa e não deve ser por acaso que se faz abundantemente a pergunta “ Tens programa para hoje?” ao que invariavelmente respondemos com um frenético abanar de orelhas de um lado para o outro como se rejeitassemos comer a sopa ou, de outras vezes, fazendo oscilar o queixo verticalmente no sentido ascente e descendente. E as televisões saiem de casa vestidas de pessoas enquanto estas se embutem num qualquer armário da sala, rodeado de enciclopédias que nunca foram abertas.
E saídos à rua, as pessoas mostram a sua grelha de programas e todos tentam captar para si audiências, aprendendo depressa a cortar a ficha técnica do final dos filmes que não interessa. E assim, há um Moniz em cada um de nós que nos faz sentir como se estivessemos num qualquer posto de comando a gritar nos ouvidos do pivôt: “ Eh pá, isso não tem qualquer interesse, acaba o directo já !” E controlando o tempo, fumando as audiências, vamo-nos mantendo acordados mesmo a esta hora, atrás das cortinas, na esperança de sermos também um programa.
Madrugada dentro, as televisões extremam-se: ora passam os melhores programas ora os piores.
ReplyDeleteAs televisões às vezes espremem-se durante a noite, espumam-se, entranham-se; e descontrolam-se, remotas, descomandam-se,e rotas, remontam e reprogramam-se.
Obrigada por "me fazeres o gosto" tão depressa.
ReplyDeleteComo sempre, muito bem escrito!
:)
O texto está fantástico !
ReplyDeletee eu cá não durmo (a)
Com que então...
ReplyDeleteJantar, casa, bruno, karaoke, expo...
Está bem, está!
o que é que andas a fumar Alvim?!?
ReplyDeleteEste era o texto que estava na edição de hoje do Metro?
ReplyDeleteEu não tive oportunidade de agarrar um, mas dei uma vista de olhos no jornal de outra pessoa enquanto ia no comboio, e reparei que o titulo era este. ^^ Fiquei arrependido de não ter lido o artigo, mas afinal está aqui postado ;) és grande!
Pelo menos sempre podemos escolher que tipo de programa de ser...
ReplyDeleteNesta descrição, então, o palco da vida está cheio de protagonistas, uns têm um papel principal, outros, secundário. O palco está cheio. Mas ainda falta falar nos assistentes, os que te observam, ouvem, absorvem a vida dos outros. Os que não têm papel nesse palco mas que fazem falta lá estar. Os actores existem, representam para serem vistos e alguém tem de estar lá, para que a vida deles faça sentido!
ReplyDeleteConclusão: Todos temos um papel nesta vida. Cada um tem o seu papel.
Manuela Ferreira
És maior que o Saramago!!
ReplyDeletesaem
ReplyDeleteAdorei o texto, Alvim.
ReplyDeleteSe calhar alguém está MESMO a dormir...
ReplyDeleteCaro Alvim,
ReplyDeletepor acaso tens na memória o dia 4 de agosto de 2004?
Sudoeste, dia de Muse, entrevista na primeira fila com a seguinte pergunta: melhor concerto até agora?
E a resposta foi: Muse!
Ao que respondeste algo como: Mas Muse ainda não foi!
Ao que ouviste de seguida: Não faz mal, é Muse e acabou-se!
Deparei-me com o teu blog e vim deixar este breve abraço.
Pedro
Acerca do que leio:
ReplyDeleteNeste palco da vida, existem muitos protagonistas. Uns com papel principal outros com um papel secundário! O palco está cheio, cheio, cheio! Mas ainda existem os que não são falados mas estão lá, os assistentes! Eles estão lá para te ouvir, para te ver, para te observar, para comentar a vida de uns e outros, no entanto, não são visíveis isoladamente...mas se estes não existissem, não haveria actores, protagonistas. Estes também têm um papel nesta vida. :-)
Alvim:
ReplyDeleteBebe ÁGUA!!!!
e já agora, deita-te cedo!
Que grande moca! Da ca disso k eu tambem fumo.
ReplyDeleteDevias estar mesmo aborrecido nao?
Cumprimentos!
Angelo
Vi ontem a repetição do "Ainda bem que apareceste" onde vossa excelência participou... Entre muitas outras coisas, tenho a dizer que as calças justas lhe ficam um mimo.
ReplyDelete"Então e esse beijo na boca?" :)
e para não variar..o que escreves faz realmente sentido!
ReplyDeleteAlvim,toma lá a minha crítica televisiva: deste texto gostei.Não contando com o renhenhéu do fim do primeiro parágrafo.
ReplyDeleteE o meu és tu, ahahahah!
ReplyDeleteO título por si só chegava.
ReplyDeleteTu escreves bem, pá! E não sei que raio de amigas arranjas tu, mas lá encantadoras fotos dão sim senhora...
ReplyDeleteParabéns à fotógrafa!;)
ReplyDeletebeijo beijo
As audiências baixam quando se entra no desemprego. Nessa altura não pode apresentar um bom programa.
ReplyDeleteGanda pedra, hem?
ReplyDelete*Por pouco interessantes que sejam os programas/filmes há muita gente (produção,equipas técnicas,etc.) que passa despercebida por causa das pessoas que acham que a ficha tecnica nâo interessa.Há imenso trabalho que é constantemente desvalorizado e normalmente só se da importância à carinha bonita que aparece à frente...
ReplyDeleteUma foto histórica, Fernando Alvim ;)
ReplyDeleteE que bela fotógrafa, sim sr.
1- alvim
ReplyDelete2-pessoa
3-saramago
4-camoes
(...)
boa analogia e pior, é (na maior parte dos casos) verdadeira!
ReplyDeleteLi isto no "Metro" e adorei .
ReplyDeleteAfinal, muitos de nós não passam de programas repetidos, e programas repetidos são mortos pela novidade. É como o amor.