Monday, February 03, 2014

DANTES, O TEMPO CORRIA LENTO, MEU

Houve um tempo em que o passado era passado, em que ficava lá atrás, em que acontecia e sabia retirar-se como um senhor distinto. Mas agora não, o passado está do piorio e agarra-se à nossa perna como uma criança que implora por um brinquedo. E não adianta querermos sacudi-lo – não adianta, não – o passado chora, grita, agarra-se com as duas mãos, desequilibrando o nosso andar, tornando-o pesado, compassado, como se de repente marchássemos tal e qual um soldadinho de chumbo. O passado está com um distúrbio de personalidade e julga-se o presente, tantas vezes o futuro. Dantes, quando o passado sabia o seu lugar, só os livros e a memória o eternizavam e, ainda assim, tendiam a refiná-lo, passar-lhe o lustro, tornando-o mais glorioso do que realmente fora. É essa a vantagem da escrita em relação a tudo. A escrita, mesmo que tenha o coração ao pé da boca, tem antes uma caneta e um teclado. E as novas tecnologias – e era aqui que eu queria chegar – vieram tramá-lo. Tirar-lhe a caneta. O filtro. E apressaram-no de forma dura, cruel, na nossa cara, se for preciso a vida toda, como se aquilo que ali víssemos, tivesse acontecido ontem. O poder de um livro é hoje incomparavelmente menor do que um vídeo. E sobretudo mais lento. Um livro ainda vai na primeira página e já o facebook, o youtube, toda a Internet, contaram o fim da história. Sei que não estou a ser romântico – não estou – mas a prova do passado deixará de ser escrita para passar a ser filmada. Ouçam-me, uma confissão escrita será menosprezada se em vez dela existir um vídeo. Se o ciclista Armstrong tivesse confessado por escrito que se teria dopado durante a sua carreira, ainda hoje teria dúvidas. Mas com a sua declaração filmada, elas acabaram. E o que mudou? O que mudou é que somos mais o que fazemos do que o que escrevemos, a imagem – sobretudo a em movimento – deixou estendida no chão a palavra. E é bem possível que o passado nos persiga mais no youtube do que nos jornais. Porquê? Porque há mais pessoas com um telemóvel que filma na mão, do que uma caneta no bolso.   

Fernando Alvim 
Publicado originalmente no jornal i

1 comment:

  1. O que tudo isso tem de bom...tem também de mau. Falta a caneta a muita gente e ainda mais o saber o que fazer com ela. E com a obesidade infantil, mais cedo ou mais tarde pode ser que um dia destes nem a cambalear consigamos andar...

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