Monday, November 04, 2013

O PASSADO MORREU


De vez em quando o passado agarra-me a camisola. E eu, que nada lhe ligo, tento desembaraçar-me como posso. Não sei se conseguirei por aqui descrever como o faço, de criar uma imagem suficientemente lúcida, mas imaginem-me numa passadeira de ginásio – isso mesmo – a correr veloz, com passada forte, com respiração ofegante e, de repente, como se fosse uma visita inesperada a altas horas da noite, uma mão pesada - o passado - a tentar quebrar-me o passo, como se me tocasse no ombro para me tirar do caminho quando estava quase a ir-me a ele com toda a força. Eu aflito, a beber água, a ser mais lesto, nunca olhando para trás, mas com a sensação de estar a correr cada vez mais, melhor e, ainda assim, não saindo nunca do mesmo sítio, com a breca. E sentir a mão cada vez mais próxima, mais intrusiva, mais vilã, a puxar a camisola - ai minha Nossa Senhora, ai Jesus credo - o braço, os calções, a pele até. Mas a mim o passado não me apanha. Não me ouvirão falar dele com saudosismo de naftalina, dizendo que no meu tempo é que era bom, que fiz isto, que fiz aquilo - oh pérfida glória - sem que em tempo algum perceba que tudo o que digo e falo é no pretérito perfeito. Por isso, desconfio sempre de quem muito fala no passado, entendo-os como uma espécie de deputados da oposição, de risca ao meio, casaquinho da maconde, que criticam tudo sem apresentar uma única ideia. O passado está sem ideias e mesmo que as tenha já de nada lhe servem. O passado morreu. E eu quero acreditar que todos os que me acabam de ler ainda estão vivos.

Fernando Alvim
Publicado originalmente no jornal i
[Fotografia de Florent Mazzoleni]

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