Sunday, January 25, 2009

Lisboa, 30 de Outubro de 2001.




Acordar de manhã e olhar-me ao espelho. Ver-me ali, quieto, mudo, de gesto igual a todos os dias. A mesma imagem repetida, o mesmo rosto, a mesma face bucólica, a lâmina fria e afiada apontada a mim ,da minha gilete, em quem já não confio. Eu aqui, ainda eu, a passar as mãos por todo o corpo e a desejar-te neste suado reflexo. Quantas caras estranhas, quantos sorrisos benignos, quanto ânsia em te ter na palma desta mão onde agora escorre a herança de um sonho só meu. O futuro desfaz-se na água e não dentro de ti. O futuro foge-me, corre viscoso, libertino, devasso, por entre o pequeno ventre da minha banheira. Dizem-me que o futuro, este futuro de que te falo, tem sabor a sal, um estranho ácido - dizem, uma especiaria rara que celebra e exalta essa coisa a que a chamamos desejo.



Está a ficar frio aqui ou então sou eu que gelei mesmo com calor lá fora. Não me sinto, sei que existo porque ainda não perdi a coragem de olhar para este espelho, mas não me sinto, nada, não me sinto nada, apenas me olho e chego-me mais perto desta imagem imóvel, agora mais serena, húmida, onde despejo todo o vapor que guardei na minha boca para te desenhar com pormenor. Primeiro, o teu nome. Depois, o teu corpo, os teus lábios carnudos de batôn rosa-shock, os teus olhos muito redondos, os teus cabelos, a tua alma que patina alegre com o meu vapor. Que linda que estás, que bom seria se não te derretesses e ficasses sempre aqui, no estado sólido e não liquido, neste vapor quebradiço onde agora arrasto a língua, demente, ímpio, saboreando a água fresca que me vem de ti.


Ainda não me esgotei, ainda aqui estou, ainda não saí de ti, estou aqui, agora, com uma persistência velhaca, a contar-te histórias muito antigas como aquela que quase aposto já não te recordas. A história da menina que pensava não saber amar, pois lhe tinham dito, na sua tenra idade, que o amor é coisa de graúdos, de idade adulta, a que nunca chegaria com o seu olhar infantil. O mesmo olhar, que tratou com cuidado as pequenas coisas a que se foi dedicando na esperança de que um destes dias o amor lhe aparecesse. E o amor não vinha nem dava sinais, porque já lá estava. Porque o amor não aparece, nasce, da mesma forma que não morre, mas se esgota. E então um dia percebeu que o amor era aquilo, uma coisa muito simples, nada complicada, uma desilusão até, com tudo aquilo que lhe haviam dito. E então, percebeu logo ali, que sempre tinha amado embora não soubesse. E que sempre tinha sido muito feliz embora não gozasse a plenitude dessa felicidade porque pensava que havia uma outra , outra versão da mesma coisa. E que sim, sempre fora realizada, embora julgasse que essa realização só seria absoluta com a existência desse amor que não vinha. E o amor, de facto, nunca veio, porque já tinha nascido, com ela, sem que no entanto desse conta .O Amor não é palpável, é certo, nem voa nos céus em formatos cilíndricos, mas ainda assim vê-se, nos quadros, no cinema, no abraço quente, tão apertado quanto os outros , mas mais hermético, sem espaço para nenhum outro.


Incluído no meu primeiro livro " No dia que fugimos tu não estavas em Casa". Foto de Scott James Prebble's.

9 comments:

  1. Quando se escreve com o coraçao na ponta dos dedos saem estes textos! Muito bom!

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  2. É incrível! Tudo o que escreves é fantástico... seja a crónica mais "profunda" ou a mais hilariante baboseira ao serviço do humor!!!

    Quem escreve assim, não é gago!!!

    E aviso-te desde já que hoje vou citar-te no meu blogue!

    Beijinhos e continuação de bom trabalho!

    Teresa

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  3. Espero bem que não... deixes de escrever.
    ...e se puderes espreita

    http://pingosdeamarelo.blogspot.com

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  4. E deixo este comentário como uma salva de palmas a este texto, pois está de facto muito bom.
    Porque o consigo ler como meu e "invejo" não o ter conseguido escrever :)

    Um abraço

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  5. Não é à toa que é o meu livro favorito, o que com orgulho espalho aos sete ventos. :)

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  6. Alvim este texto é lindo e dá-me vontade de ir ler o teu livro pela milésima vez. Sabes que o leio quase sempre que estou triste?
    Este é umdos textos que mais gosto, mas o meu preferido é o da felicidade com lágrimas nos olhos, esse acaba comigo por completo.

    "Faço força com os olhos para que fiquem maiores à tua passagem".


    Continua a escrever que a gente daqui agradece!


    =)****

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  7. Distanciando a pessoa pública...este texto é de ficar sem folgo.
    Anna

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  8. lindo alvim, lindo!;)

    citando a Marta "ali em cima", dá vontade de ler o teu livro pela milésima vez!!
    **

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