Thursday, November 06, 2008

30 Anos de casamento


Há dias, numa viagem de comboio, folheando a minha agenda, reparei no caos geográfico das minhas deslocações nos últimos meses: “tenho mais quilómetros que um volkswagen dos anos 70”, murmurei (a rapariga que ia sentada no banco da frente, levantou os olhos do livro e olhou-me desconfiada).

De facto, mal paro em casa. Vazo os treze quilos de publicidade da caixa do correio, rego as plantas, trato dalguns assuntos pendentes e pronto, há que renovar o stock de roupa da mochila – boxers do pluto, t-shirts dos teletubbies, pijama do Marilyn Manson – e ala que se faz tarde.

Ora, nesse dia, tocou-me uma espécie de nostalgia por uma rotina que nunca tive: imaginei-me, inclusive, com 30 anos de casamento! Vi-me a acordar à hora certa no leito conjugal, a dar o primeiro chocho da manhã ao meu amor, a entrar na cozinha para o pequeno-almoço (de lágrimas nos olhos por causa de um pêlo que tentara, sem sucesso, arrancar do nariz), a dar o segundo chocho e a sair para o trabalho onde, salvo o almoço e umas idas ao snack do rés-do-chão para um piropo à empregada, um croquete e uma bica, passaria as oito horas da praxe. Seguir-se-ia o regresso a casa, um beliscão na nádega do meu amor e terceiro chocho do dia com a pergunta “o que é o jantar hoje?”, embora, às quartas, fosse invariavelmente coxas de frango com puré. Após refeição, seria só vestir os pijamas, ver a telenovela, o programa do Malato e cama (eu a vir do WC, olhos rasos de água, exibindo, orgulhoso, na pinça, o pêlo do nariz que finalmente conseguira arrancar). Deitados, já com a luz apagada, daríamos então o último chocho, este com alguma insinuação de língua, mas nada de especial, porque sexo só na segunda sexta-feira de cada mês (não somos nenhumas máquinas sexuais).

Manhã seguinte, despertador, eu a ir para o primeiro chocho do dia, mas agora a minha esposa tinha uns olhos enormes. “Porque tens esses olhos enormes?”; responde-me que “é para te ver melhor”. “Então e essa boca enorme?”: mostra, os dentes afiados, medonhos: “é para te comer”, e lança-se a mim, comigo a tentar fugir, “Não! Não! Não! Não!”.

“Acorde!, hei, acorde!”: a rapariga que ia sentada no banco da frente levantara-se e sacudia-me. “Isso é que foi um pesadelo, hum? Desatou para aí a gritar um não-não-não que metia dó”.

Voltei a pegar na agenda: Famalicão, Porto, Lisboa, Santarém, Bragança... O caos geográfico das minha deslocações era real. Felizmente. Quanto à nostalgia pela falta de rotina: tinha-se esfumado.

11 comments:

  1. Alvim, tu és genial. E daqui fala-te a tua carraça.

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  2. bom, com uma perspectiva assim, acho que qualquer um teria medo da rotina, aliás pesadelos mesmo. A rotina é uma inimiga q chega e se instala silenciosamente - cabe à vítima esbofeteá-la violentamente e pô-la a andar dali para fora.
    A verdade, de facto, é que a maioria dos casais são atacados pela rotina, uns mais cedo que outros, daí associares um casamento de 30 anos a um pesadelo rotineiro.
    Mas, pasme-se, existem casais que conseguem manter essa inimiga bem longe, mesmo depois de décadas de vida vivida em conjunto. São poucos, e são sábios (para conseguirem tal feito) - mas existem. Conheço um ou outro.
    ah, e a rotina de levantar de manhã (ou seja a que horas fôr) e ir trabalhar existe a partir do momento q tens de te sustentar. Cabe-te escolher se preferes dar um beijo de bom dia ao espelho, ou ao gato, ou ao piriquito, ou a uma mulher.

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  3. Passei 4 anos a desejar um trabalho activo e que mudasse todos os dias...agora que o tenho, desejo, quase todos os dias, o meu trabalho rotineiro...nunca se está satisfeito. Isto de andar por todo o país e não se saber onde se vai estar na próxima semana é interessante mas também cansa...penso que o ser humano, na sua maioria, gosta de dar por certo quase tudo o que lhe acontece...daí que se caia no abismo quando se fica desempregado ou se acaba uma relação. Isto porque nos apegamos a tudo muito facilmente. E é bom não nos apegarmos...assim não criámos laços e não sofremos no caso de desapego (ou tentativa de) mas também é bom termos alguma espécie de apego para não nos tornármos seres frios e desprendidos. Que misto de contradições este meu comment...acho que a única coisa certa aqui escrita é que somos seres de apego e desapego, uns insatisfeitos, enfim...humanos.

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  4. Um tanto exagerado essa visão da "rotina", não?
    E um tanto pobrezinha, também, digo eu!!

    A rotina pode ser elevaíssima, agora não tem é de certeza croquetes e frango com puré e sexo em dias marcados...

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  5. somos lixados, sempre "estou bem aonde não estou", etc...
    tive uns 5 anos de rotina e depois resolvi partir para a cena do "eu é k faço o k kero"; agora? sei lá... nonsense...

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  6. Bica Alvim?!
    Oh meu Deus...
    Perdemos-te!

    Volta cá para cima!

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  7. Gosto muito da maneira como escreves Alvim, mais até do que como falas porque ai, às vezes, atrapalhaste um pouco :)
    Se puderes visita o meu blog, teria muito gosto e ficaria muito contente.
    Abraço.
    link do meu blog:
    http://kulcinskaia.blogs.sapo.pt/

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  8. Rotina... é a rotina... :)

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  9. Quando desconhecidos me perguntam o que faço, respondo que sou caixeira viajante...e que vendo lápis de cera de muitas cores! Na verdade, ambiciono um pouco de rotina com um horário de entrada e um horário de saída, nem que fosse para experimentar e me arrepender...ao invés disso...tornei-me assidua nas áreas de serviço de norte a sul do país e sou altamente poluente, porque faço mais km's numa semana que muitos portugueses fazem num par de meses...

    Esta semana que passou, até que foi calma...2ª em Famalicão e Aveiro (com 2 dias metidos num), 3ª Santarém, 4ª Alcobaça, 5ª tive a sorte de ficar no escritorio e 6ª Vendas Novas...

    Quando te vir na estrada, faço-te sinais de luzes :)

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  10. Bem...
    Este post está espectacular!!

    A rotina tem destas coisas...

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