Friday, July 12, 2013

«Balanço Vital» do Jornal Metro

Desta vez, fomos bater à porta do misterioso autor da Criada Malcriada


O início ou Como cheguei a Portugal
A memória é difusa, como é sempre a das crianças. Lembro-me do mar azul e do céu que o prolongava. Lembro-me de um yacht, de uma bandeira – que mais tarde aprendi ser a da Suécia – e do som de uma música suave. O que veio a seguir, é uma confusão de explosões, de gritos e da enorme bola de fogo que envolveu tudo. Lembro-me de cair ao mar, lembro-me de nadar até um destroço qualquer, o resto de uma porta, de uma mesa, de uma cama. Não era, seguramente, uma bancada de cozinha, porque costumam ser de fórmica e lembro-me bem do cheiro característico da madeira na água. Pelo ar à minha volta, voavam partes do que ainda há pouco eram pessoas e outras coisas que costumam haver dentro dos yachts. E vi, numa imagem que me acompanha até hoje, a cabeça loira decepada da minha mãe, com a tiara de esguelha, que se afogou tristemente uns metros à minha frente. Depois disso, não me lembro de mais nada. Cheguei à praia, arrastado numa rede, entre camarões e sardinhas, berbigão e cavalas. Lembro-me do casal de pescadores que me acolheu e a quem chamei pai e mãe. Da casa onde vivi os dez anos seguintes. E da Nazaré. Do areal extenso e do mar picado da Nazaré.

A fuga para Lisboa
Quando tinha quinze anos, fugi para Lisboa. Vim escondido no meio de couves-galegas e molhos de agrião numa carroça puxada por dois burros, do tempo em que havia carroças puxadas por burros que levavam couves-galegas e molhos de agrião, e se fugia para Lisboa em carroças cheias de couves-galegas e molhos de agrião puxadas por burros. Depois de desistir de procurar a minha verdadeira família e de tentar convencer toda a gente que eu, obviamente, não pertencia aqui, empreguei-me numa chapelaria que vendia chapéus, que era moda na altura. Como ficava numa rua onde passava muita gente, acabei por conhecer pessoas interessantíssimas, cultíssimas, inteligentíssimas e um português. Foram elas que acabaram por influenciar a arte que escolhi abraçar: a miniatura de monumentos nacionais com pauzinhos de fósforos (usados). 

O Mundo e eu
A internacionalização era o passo lógico seguinte. Apesar de nunca ter chegado a sair de Portugal (estive uma vez em Fuentes de Oñoro, numa coboiada que até valia a pena contar, mas como são só cinco histórias…), comecei a fazer miniaturas de monumentos de todo o mundo. Alguns deles eram tão grandes e imponentes que tive que usar fósforos daqueles de acender o forno, que acabam por ser mais rijos, mas ficam um bocadinho mais caros. Tudo isto foi antes da internet e quando ainda havia cabines telefónicas daquelas que tinham uma porta que dobrava, e que nos fechávamos lá dentro, mas que ficávamos sempre entalados na porta, para entrar e para sair, não estava lá muito bem pensado… mas tinha uma prateleira para pousar as coisas enquanto se falava ao telefone. Bom, como não havia internet, tinha que usar imagens que encontrava em enciclopédias, revistas de viagens e fotografias daquelas chatíssimas das férias dos amigos.  Curiosamente, nunca fiz nenhum monumento sueco, porque acho que não têm. Ou, se têm, não vinham nem nas enciclopédias, nem nas revistas de viagens, nem nas fotografias das férias dos amigos, que eram quase todas no sul de Espanha, onde os monumentos eram sempre umas fontes com azulejos e uns repuxos de água que me lixavam os fósforos todos. 

O 11 de Setembro
Como para qualquer pessoa normal, o dia 11 de Setembro marcou a minha vida daquela maneira em que passa a haver um antes e um depois. Foi exatamente a 11 de Setembro de 1997 que percebi que os anos que passara a fazer miniaturas tinham sido um desperdício das minhas verdadeiras capacidades. Vendi a pequena casa-museu que entretanto construíra na Reta de Pegões, peguei no dinheiro e resolvi publicar em edição de autor os poemas que vinha escrevendo desde 28 de Agosto. Fosse por serem escritos em sueco – o apelo do sangue havia feito com que aprendesse a língua – fosse pela letra muito miudinha e o papel fininho que não deixava ler bem por causa da transparência, o que é certo é que o livro foi um sucesso estrondoso. Motivado pelo espirito empresarial que me ficara dos tempos em que vendia as miniaturas a mil escudos cada (na moeda antiga), lembrei-me de investir tudo o que ganhara numa ideia genial que tivera: um restaurante onde vendia hamburgers dentro de uns pães redondos, batatas fritas e coca-cola, tudo em menu, e onde a ideia era ser atendido em menos de três minutos e comer em menos de dez. Não correu bem. Apesar de tudo, receberam-me de volta de braços abertos na Nazaré. 

Renascer  
Hoje, descobri que a vida, às vezes, nós dá uma segunda oportunidade. A Nazaré é um sítio muito pequeno para o mundo que eu já vi (entretanto, inventaram a internet). As conversas aborrecem-me: continuo sem conseguir distinguir um robalo de uma xaputa e reviram os olhos quando pergunto se apanharam salmão. «Não há disso no mar». Aliás, «Não há disso no mar vírgula uns palavrões que não deve dar para dizer aqui». Mas este mundo que me encerrou na introspecção fez-me encontrar no desenho o meu refúgio, a minha companhia. É pela fresca que faço as tiras da Criada Malcriada, com os olhos postos no mar, onde tudo começou, sonhando ainda às vezes em voltar a casa. Ou talvez eu já esteja em casa. Tenho noventa anos e sou feliz. 

5 Sonhos
1. Gostava de conseguir ver todos os episódios do Doctor Who numa semana ou menos, para poder falar disso com a minha amiga Joana. Não sei nada sobre a série e ultimamente têm ficado uns silêncios estranhos durante as nossas conversas.

2. Ter um programa infantil em directo na televisão, acabado de chegar da noite, com convidados especiais que são os amigos que conseguir convencer a ir para o estúdio depois de sair do Lux. A ideia é tentarmos que não percebam que estamos bêbedos. Quando acabar o bloco de desenhos animados, por exemplo, escondemos as litrosas e os cigarros atrás das costas e cantamos músicas divertidas. 

3. Gostava de ir à lua e de conhecer o Ringo Star, porque é um Beatle de que nunca se fala, e queria saber o que é que ele acha disso, se é tipo a mesma coisa que ser o marido da Oprah ou assim. Ah, gostava de fazer estas duas coisas no mesmo dia. 

4. Gostava de saber desenhar, para poder passar a dizer a quem chama toscos aos meus desenhos: «Tosca é a tua mãe. E uma ópera do Puccini mas nem deves saber o que isso é».

5. Gostava que houvesse paz no mundo e que todas as pessoas vivessem felizes. 


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