Wednesday, December 28, 2011

Blogue Memória: post de 1 de Janeiro de 2008



Memória Intermitente

Gosto de sair à noite, mas nem sempre foi assim. Durante um período da minha vida que gosto de esquecer, saía de dia, mas acreditem que não é a mesma coisa e acaba por ser aborrecido encontrar sempre as senhoras da limpeza. Não é que eu não goste ou que tenha alguma coisa contra, mas nunca achei muito - como direi? - excitante, ver mulheres com uma voluptuosa farda azul a varrerem o chão e a recolherem os copos.

O que eu gosto mesmo é de sair à noite, pela tardinha. E eu saio. E gosto. E bebo uns copos. E como todos – julgo – tento divertir-me o mais que posso e se possível conhecer alguém que queira vir comigo tomar o pequeno-almoço. Uma meia de leite e uma torrada bem aparada, aqui para a mesa do fundo, se faz favor! E todos se olham e penteiam o mais que podem enquanto comentam a noite anterior “Que aquela loira, a do bar, se estava a fazer completamente a ele, mas ele não podia dar o flanco porque estava com a outra que afinal o deixou completamente agarrado, pois claro!” e a outra “A morena que estava com a prima, que passou a noite inteira a enviar-lhe sms’s enquanto se agarrava ao namorado, a porca! Já viram isto?” e todos se riem enquanto partilham as aventuras da noite anterior e comentam quem entra na porta do café. Aliás, as grandes figuras da noite, sabem-se neste momento, na entrada em cena para o pequeno-almoço, na quantidade de “Hei, como tu estás!” que se ouvem, no burburinho gigante da multidão à chegada e em alguns casos, na gloriosa saída em maca para a ambulância.

E existe fama sim. E é esta. A de ter bebido tanto que já nem se lembra. De ter uma vaga ideia de que terá dito isto mas não tem a absoluta certeza – os risos sucedem-se - de que fez algo ali a meio da noite onde lhe parece ter acontecido alguma coisa mas que não se recorda – E alguém pergunta “Olha lá, tu lembraste de te teres atirado à Dulce a noite toda?” – e invariavelmente, ao primeiro indignado “Eu fiz-me à Dulce?” a gargalhada é geral e o episódio é contado ao seu protagonista principal como se este não o tivesse vivido ainda há pouco. “Eh pá, eu não posso ter feito isso! Eu não disse! Eu não fiz! Eu não quero! Eu não estava assim tão mal! Digam-me por favor que isso não é verdade! E todos os “nãos” se transformam agora em “sims” para seu absoluto espanto. E de todas as vezes, perante esta perniciosa perda de memória, os amigos e as amigas aproveitam-se disso para juntarem outros pormenores que na verdade nunca chegaram a acontecer, mas que os divertem tanto ou mais do que os que na realidade existiram, mas que ele nunca terá a certeza suficiente para os desmentir.

E no pequeno-almoço, dá-se conta que entretanto ali se estabeleceu uma espécie de tribunal onde, a um ritmo frenético, são agora trocadas acusações entre todos. “Que tu é que estavas muito mal! Que o outro é que teve a culpa! Que o vodka estava claramente marado! Que aquele disse isto! Que outra está mortinha, mortinha, por estar contigo! Que não, que não foi nada assim e eu é que sei e vou contar a verdade! Que alguém saiu a meio da noite! Que a outra desapareceu ao mesmo tempo! Que não fui eu! Que não foi ela! Que eu é que sei mas não digo! E quanto isto, mais uma meia de leite e “olha-me só para aquela maluca que acaba de chegar, pá! Diz lá que eu não tenho razão! Olha com quem ela está! Eu tinha-te dito, mas tu não querias acreditar, pois aí tens! É mais uma tosta mista que temos que ir para casa. E vamos. E Fomos. A noite termina aqui, curiosamente, no preciso instante em que as senhoras da limpeza com batas azuis voluptuosas varrem já a noite passada e recolhem os corpos, que aí encontram, vazios.

A fotografia de James Dean no Times Square é de Dennis Stock.

4 comments:

  1. tenho saudades das tuas escritas!

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  2. Acho nem dos "Hey que tal tu estás" me lembro... :) Mas é tudo verdade! Também gostava de sair à noite. Ate nascer a minha princesa e agora saio à noite...da cama, para a ir aconchegar! :) Abraço Melgacense F.Alvim.
    Christophe

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  3. Mais textos senhor Alvim, por favor : ).

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  4. Tenho tantas saudades de te ler em vez de ver só fotografias dos sítios onde dizes "meter discos". Não é nenhuma crítica, era o que mais faltava, o blogue é teu e só vem quem quer... Mas que tenho saudades lá isso tenho.

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