Abençoada por Deus

A noite escapou à crise e não me venham dizer que isto não é verdade porque eu sei que é verdade. E isto, só não é admitido por todos porque fica mal dizer que não houve crise. Mas ouçam, cheguem-se cá de novo, podem ler aqui nos meus lábios o que agora vos digo: Não- houve- crise-coisíssima-nenhuma- na- noite! Como? Dirão muitos. É isto que acabaram de ouvir, caríssimos leitores. E posso repetir se quiserem. Vamos cá ver, as pessoas gostam de se solidarizarem umas com as outras e não deve ser por engano que mal alguém revela que foi assaltado no estabelecimento, ou que lhe raptaram uma prima que estava cá de férias só para ver as montras, é certinho que aparece alguém a dizer que também já lhe aconteceu exactamente o mesmo, que não foi assim há tanto tempo e que, o que a ele aconteceu, foi ainda pior. Incomparavelmente pior.

Ouçam, não houve crise nenhuma à noite, porque a noite é barata. E por mais que as acções da Sonae tenham descido e que a fábrica de Lafões tenha dispensado todos os funcionários - alguns com mais de 30 anos de casa - ninguém, no seu perfeito juízo, vai tentar deixar de sair à noite. Seja para matar as mágoas de um injusto despedimento colectivo, seja para celebrar o nascimento de mais um filho. E esse é o segredo da noite, porque tanto serve para estancar uma tristeza, como estender os braços de alegria por tamanha façanha conseguida. A noite serve para tudo e é muita parecida com os aeroportos de todo o mundo durante a madrugada: deixam entrar toda a gente. E ainda bem.


As pessoas, muitas delas, fazem da noite a sua vida e se de início iam dizendo a medo que esta se dividi-a entre o dia e a noite, agora já não. Há quem viva só de noite e não tenha nenhum problema em dizê-lo. Nem pode ter. O dia é que fazemos com ele e não me venham dizer que deitar cedo e cedo erguer, alimenta e faz crescer, porque conheço imensa gente que o fez durante toda a sua infância e adolescência por imposição dos seus pais, e que agora, analisando friamente, têm uma estatura minorca e alguns sinais de deficiente nutrição. É como a história do leite. Todos os anos a ouvir a história de que faria crescer, com o vitinho e todas as personagens do meu imaginário infantil a dizerem-me o mesmo, eu vi o mickey a dizer isto “O Leite faz crescer miudagem!”, eu vi o Pateta a dizer o mesmo “O leite cresce!” os pequenos estrunfes – imaginem só - a fazerem igual apelo : Bebe sempre leite se queres crescer! Crescer? Como assim? Como os pequenos estrunfes que mal cabiam numa palma da mão? E agora, digam-me lá, centenas e centenas de litradas de leite depois, quem me consegue explicar o meu metro e setenta e três? Ninguém não é. E eu nem serei o caso mais grave, olhem os gémeos castro, olhem a Dina, olhem o Marques Mendes. Quem é que consegue convencer estas crianças que não beberam leite em vão durante estes anos? Que também é bom para a osteoporose. Que tem imenso cálcio. Pois pois, é a mesma história de que o peixe tem ferro e faz bem à saúde. O que faz bem à saúde sei eu bem: É sair à noite. E todos os médicos deveriam passar receitas, em que em vez de indicarem medicamentos, revelariam outros métodos:

Paciente: Senhor doutor, estou muito doente, dói-me imenso as costas, o meu colesterol anda elevadíssimo, não sei o que fazer?
Doutor: Olhe (voz pausada, passa no cachimbo) a senhora vai fazer isto. Portanto: à quarta-feira vai para o bairro alto e não me chegue a casa antes das 3. Na sexta-feira, pode ir às galerias paris mas não se deite tarde. E ao sábado, fique até às horas que quiser no lux e que amanhã é domingo. Compreendido?

Paciente: Sim, senhor doutor, deus o abençoe.