Monday, June 24, 2013

Não é para mim

Gosto de ronhar, fazer ronha, fingir-me de morto. Gosto de esconder a cabeça por entre os braços e dizer não estou. Gosto de ficar inanimado, a olhar para o tecto, na cama como um vertebrado - daqueles verdes, quietos - estendido ao sol. E perceber que o meu grau de imobilidade é de tal forma acentuado, que sou incapaz - acreditem no que vos digo - de estender o braço, ali ao lado da cama e atender o telefone que repetidas vezes me pede para que fale e confirme que estou vivo. Eu estou vivo e por isso digo que quando ronhamos, nada no mundo é assim tão grave. A ronha é bem melhor que a preguiça por causa disto.

A preguiça sabe que é grave, que tem de ir trabalhar, que se não se levantar perderá o emprego e o autocarro lá fora. A ronha é a preguiça de fim-de-semana e que a perder algo, quando muito, perde o sol na praia.

Talvez por isso as crianças - sobretudo estas - sejam exímias praticantes de ronha e nos façam rir por isso. A ronha mente, mas mente mal porque se ri por dentro, às vezes por fora, por debaixo dos cobertores, fingindo-se invisível e ausente na cara de quem o quer fazer agir, na maioria dos casos, acordar.

A preguiça não está acordada mas quer, a ronha está a fingir dormir sempre. Por isso a preguiça é a ronha dos adultos e talvez por isso seja menos tolerável, excepto quando estamos completamente apaixonados e até o assoar de um lenço é admirável. A preguiça levanta-se ao fim de um tempo para ir apagar a luz deixada acesa, a ronha finge que não vê e que não é grave ficar assim a noite inteira. A preguiça ouve a campainha da porta e de andar pesaroso, ao fim de um tempo, levanta-se e diz "quem é?". A ronha ouve a mesma campainha e diz para si "não é para mim".

Fernando Alvim
Publicado originalmente no jornal i
[Fotografia de Melissa Ann Pinney]

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