Friday, May 10, 2013

Inquéritos do jornal METRO


Aqui vai mais um. Desta vez, convidámos o escritor Bruno Vieira Amaral, que acabou de publicar o livro «Guia Para 50 Personagens da Ficção Portuguesa» (edição Guerra & Paz). Então, cá vão a resposta do nosso conversado:


Cinco acontecimentos

O dia em que fiquei em último na corrida de sacas
O clube onde os velhos se juntavam para jogar dominó e cuspir pevides para o chão organizou um arraial e, para animar a festa, uma corrida de sacas para os mais novos. A distribuição de prémios foi pensada por uma mente sádica e mesquinha: todos os participantes tinham direito a uma medalha, à excepção do último. Fiquei em último. Apesar de vários recursos comoventes apresentados pelos meus amigos não tive direito a medalha e fiquei a roer melancolicamente o rebuçado que, com pouca destreza, retirei de um prato cheio de água e farinha.

O dia em que parti a cabeça ao fininho
O fininho era o fininho era o fininho. Era manifesta a sua incompetência para a prática desportiva, uma falha que todos nós lhe perdoávamos alegremente porque era ele o proprietário da bola com que jogávamos nos intervalos. Naquele dia levou raquetes de ping-pong. Jogámos a pares e posso dizer que o Fininho fez tudo o que estava ao alcance da sua falta de jeito para nos submeter a uma pesada humilhação. Para evitar que tal sucedesse tomei a decisão, que hoje considero precipitada, de lhe acertar com a raquete na parte anterior do crânio, provocando uma incontrolável hemorragia geradora de um justificado alarme entre contínuas e professores de Educação Visual que, no meio de gritos e impropérios, hesitavam entre acudir ao Fininho e neutralizar o feroz agressor. Fui levado ao Conselho Directivo onde me interrogaram judicialmente sobre as razões do meu comportamento. Respondi, tão clínica e sinceramente quanto mo permitia o terror de uma possível suspensão: “Enervei-me”.

O dia em que redefini o amor
Certo dia, frequentava eu a 4ª classe, a nossa professora teve uma daquelas ideias esquisitas que costumam assolar mentes onde raramente um pensamento original faz o favor de pousar. Desafiou-nos ela a compor uma redação sobre o tema “O que é o amor?” Eu, que sempre que me vi confrontado com perguntas que ultrapassavam a minha competência nunca hesitei em recorrer ao auxílio de gente mais sábia, escrevi que o amor é coisa que não tem definição. Dez minutos depois, a sala estava cheia de professoras e outros curiosos convidados para testemunhar o fenómeno de uma criança que aos dez anos se atrevia a jurar pela indefinibilidade do amor. Menti tanto quanto pude, mas não tão bem que, passados cinco minutos, as professoras não saíssem manifestamente desiludidas pelo golfo entre a minha prestação literária e o meu balbuciante desempenho verbal. Mesmo assim, ficaram sem saber que a frase que apresentei como minha, e que por alguns segundos me transportou à categoria de génio, fora indecorosamente roubada de uma entrevista da locutora de continuidade Isabel Bahia, à revista TV Guia.

O dia do grande jogo
A ocasião era o último jogo de um torneio de futebol de cinco. Nos primeiros jogos, tinha ido à baliza onde, modéstia e um fenomenal frango à parte, até me portava com alguma dignidade. Porém, nesse dia revoltei-me. Queria jogar na frente. O treinador não concordava comigo e explicou-me racionalmente os seus motivos: “Não jogas um caralho.” Sem refutar a pertinência da observação insisti. Ou ia à frente ou, sei lá, bem, o melhor era ele pôr-me a jogar. E ele, farto de me ouvir, seguramente guiado por uma luz divina, lá me fez a vontade. Entrei em campo. De seguida, um pouco à traição, a bola sobrevoou o campo e, facto espantoso, seguindo na minha direcção. Preparei-me logística e mentalmente para desferir um pontapé fulminante mas no momento em que o meu pé deveria ter contactado com a bola, esta caprichosamente furtou-se à carícia deixando-me entregue a um solitário bailado concluído com uma estrondosa aterragem de costas. O povo que enchia o campo riu aflitivamente, alarvemente. Eu só queria continuar ali, esquecido no chão, a ver a bola a sair pela linha de fundo.

Aprender
De cada vez que tentei aprender matemática, xadrez e alemão fracassei, o que me leva a desconfiar da virilidade da minha inteligência, que é muito do género de ter pavor de correntes de ar não vá apanhar uma pneumonia. Gostava de ter uma inteligência mais musculada, um desiderato muito difícil de se cumprir enquanto a minha palavra preferida for “crisântemo.”

Cinco projectos
I Comprar a casa dos meus bisavós na aldeia de Montalvão, recuperá-la e, daqui a muitos anos, rodeado de netos e bisnetos, morrer à sombra da laranjeira que está no quintal.
II Ganhar o torneio de Wimbledon numa tarde soalheira de Domingo e, simultaneamente, estar em casa a assistir à minha vitória em directo na RTP2.
III Salvar a vida de alguém e ser entrevistado pelo Correio da Manhã: “Fiz aquilo que qualquer pessoa no meu lugar faria.”
IV Envelhecer como Aznavour.
V Esquecer uma certa tarde de Julho, há muitos anos.


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